Personagens
Pathelin Advogado,
esperto e ardiloso
Guilhermina Sua mulher,
astuciosa
Guilherme Comerciante,
simplório
Teobaldo Pastor,
ingênuo e confiante
Juiz
Autoritário, solene
Cenário:
No teatro medieval os cenários são
simultâneos, isto é, todos os locais da
ação eram justapostos. Aconselhamos a
estilização. Pode ser feito com rotunda escura e
elementos mutáveis de acordo com o estilo da
peça.
Cena I
Pathelin - Por Deus, Guilhermina.
Por mais que dê tratos à bola, não consigo
descobrir um meio de ganhar um vintém. Houve tempo, no
entanto, em que não faltavam clientes nem belos escudos.
Guilhermina - Pois é, esse tempo já vai longe.
Agora estamos assim: um dia bem, um dia mal, ora enganando, ora
enganado. Nunca vi coisa igual.
Pathelin - E posso jurar que não há nesta
cidade melhor advogado do que eu, excetuando o Juiz.
Guilhermina -- É que ele leu a cartilha, estudou
muito tempo para o colegial.
Pathelin -- Ninguém conhece como eu as correntes, as
molas, as engrenagens dos processos. Não há quem seja
mais experto do que o doutor Pathelin para torcer as
leis.
Guilhermina -- Para quem não aprendeu mais do que
quatro ou cinco letras ....
Pathelin -- Sou um verdadeiro mestre...
Guilhermina (cortando) - ...de trapaça! Neste
domínio você não cede a ninguém o
primeiro lugar.
Pathelin - Não confunda os nomes nem as coisas. Sou
simplesmente hábil.
Guilhermina - Bela habilidade... Enfim, tudo neste mundo
pode ter dois nomes. De que adianta isso? De nada. Morremos de
fome. Olhe nossas roupas. Veja em que estado estão o meu
vestido e a sua roupa. Até parece que estamos vestidos de
gaze. Cada vez que sento ou encosto em algum lugar, tenho medo de
deixar colado um pedaço da minha saia. O dia em que isto
acontecer, só me resta o recurso de fingir de
paralítica e esperar passar o resto da vida sentada...
Porque ganhar outro vestido, não tenho a menor
esperança.
Pathelin -- O que precisamos é achar algum modo de
ganhar dinheiro.
Guilhermina -- Mas como?
Pathelin - E você ganhará um novo vestido hoje
mesmo.
Guilhermina - O que? Você enlouqueceu?
Pathelin - Longe disso. Nunca tive tanto juízo.
Guilhermina - Está se vendo.
Pathelin - É isso mesmo. Acabo de ter uma
idéia magnífica.
Guilhermina - Minha Nossa Senhora! Suas idéias
magnificas já o levaram ao pelourinho. Será que o
lugar é tão bom que deseje voltar para lá?
Pathelin - Deixe-se de tolices. O que pretendo fazer
não terá a menor conseqüência.
Guilhermina - Hum!
Pathelin - Vamos, de que cor e de que fazenda você
quer seu vestido?
Guilhermina - Da cor e da fazenda que você conseguir
extorquir do comerciante, que for bastante tolo para lhe vender
fiado.
Pathelin - Deus obra em tempo mínimo. Você
verá que o espírito é mais forte que a
matéria e que o homem de espírito não precisa
de dinheiro para vestir sua cara-metade e a si próprio.Se
for preciso, vou demonstrar todo o meu engenho. Nunca se viu outro
igual a mim. Até já!
Guilhermina - Vá com Deus. Se encontrar algum
otário, não se esqueça de beber com ele.
Cena II
Pathelin - Deus o guarde, senhor
Guilherme.
Guilherme - E ao senhor também, doutor
Pathelin.
Pathelin - Ainda bem que o senhor me reconhece. Não
houve maior amigo do falecido senhor seu pai do que eu. Deus
dê glória à sua alma. Que santo homem era ele!
Mas o senhor é retrato vivo dele...
Guilherme - Todos dizem isto...
Pathelin - E é coisa evidente. Mas, como vão
os negócios?
Guilherme - Hum... Assim, assim. O senhor sabe,
comércio é profissão ingrata.
Pathelin - Sem dúvida, mas para um homem honesto,
inteligente e ativo como o senhor, as coisas não podem
deixar de ir bem.
Guilherme - Bom, sempre dá para viver, mas os
negócios podiam ir melhor...
Pathelin - Certamente. Enfim, quando se tem suas qualidades
físicas e morais, quando se é assaz bem feito de
corpo para atrair os olhares femininos e bastante inteligente para
tirar proveito duma impressão causada a uma rica senhora...
vendendo-lhe a bom preço uma fazenda que ela não
examina porque tem o olhar embevecido no vendedor...
Guilherme - Qual nada, doutor Pathelin...
Pathelin - Ora vamos, eu o conheço... Seria preciso
que neste ponto o senhor não parecesse nada com o falecido
senhor seu pai - que Deus tenha sua alma! Aliás é
muito justo. As belas coisas devem ser pagas. Se Deus lhe deu belos
dotes, foi para que o senhor tirasse proveito deles.
Guilherme - O senhor está me confundindo...
Pathelin - Dizer a verdade confunde-o? Mas meu Deus, quanto
mais eu olho o acho mais parecido com o senhor seu pai. Os mesmos
olhos, a mesma boca, o mesmo nariz. Se vocês dois tivessem
batido com a cara no muro não seriam tão
parecidos.
Guilerme -- Como?
Pathelin -- E a sua boa tia Laurence, morreu?
Guilerme -- Ainda não.
Pathelin -- Pois eu a conheci.: bela, alta, direita e
graciosa. Santa Mãe de Deus! Vocês têm o mesmo
corpo. No país não existe, ao que parece,
família onde todos se parecem mais. Quanto mais olho para o
senhor mais vejo o seu pai.
Guilherme - O senhor conheceu muito o meu pobre pai?
Pathelin - Se o conheci! Não havia dois amigos mais
inseparáveis nesta cidade. Eu gostava de sair com ele porque
as moças o olhavam, e eu ia recebendo as sobras. Que homem
era ele! Bom comerciante e finório como ele só.
Ninguém o enganava. Exatamente como o filho!
Guilherme - O senhor sabe, no comércio, se não
se abre os olhos, todos nos roubam.
Pathelin - Naturalmente... Mas que lindo tecido é
este...
Guilherme - É tecido de Ruão, muito bem
tecido, veja.
Pathelin - É muito cara?
Guilherme - Nem tanto... Doze escudos a vara...
Pathelin - E o senhor diz que não é cara?
Guilherme - A tosquia está tão difícil.
O senhor não sabe como o tecido tem sumido de
preço... Tenho tido tanto prejuízo... Os
tecelões aumentaram o preço do trabalho, os carneiros
têm morrido de peste ou então pela falta de cuidados
dos pastores. Eu mesmo estou com um caso desses.
Pathelin - Qual?
Guilherme - Um patife de um pastor que eu próprio
criei. Matava-me os carneiros para comê-los ou
vendê-los. Depois vinha dizer que tinham morrido de peste.
Acabei descobrindo e a brincadeira vai lhe custar cara. Fiz queixa
ao Juiz e ele mandou buscar o pastor para
apresentá-lo hoje diante do tribunal. O canalha
pegará pelo menos umas boas horas de pelourinho.
Pathelin - Se o senhor precisa de um advogado estou
às suas ordens. Não é para me gabar, mas
não sou dos piores. Liquido em um instante o seu caso. Se o
senhor quiser posso mandar enforcá-lo.
Guilherme - Não quero tanto, o pelourinho basta...
Mas, voltando ao tecido, tudo isso faz com que o preço dos
tecidos tenha subido prodigiosamente.
Pathelin - Estou tentado com este tecido. Que maravilha de
tecido! Só uma casa de primeira ordem se poderia encontrar
tal coisa.
Guilherme - Leve-a, o senhor não se
arrependerá. É um tecido forte e de cor firme.
Pathelin - Estou vendo. Estou vendo. Só acho um pouco
caro. Se o senhor deixasse a vara a dez escudos...
Guilherme - Por Deus, que não posso. Doze escudos foi
quanto ela me custou. Estou lhe vendendo pelo preço de
custo.
Pathelin - Bem vá lá. Não vou brigar
com o filho do meu maior amigo por tão pouco. O senhor pode
cortar.
Guilherme - Quantas varas?
Pathelin - Para mim, uma... duas... três e meia. Para
minha mulher, duas e meia. Ela é alta... E, é isso
mesmo. Cinco varas e meia. Não, seis.
Guilherme - Porque não leva toda a peça?
São sete varas.
Pathelin - É, está bem. Sobra um pouco, mas
não faz mal.
Guilherme - Tecido nunca é demais. Está
aí a peça. São 84 escudos.
Pathelin - O senhor virá recebê-los em minha
casa onde jantará comigo um admirável pato que minha
mulher está cozinhando.
Guilherme - Mas eu não posso, estou muito
ocupado.
Pathelin - Ora, deixe de bobagem. Às seis horas o
senhor é obrigado a deixar a loja. O senhor não
é judeu para trabalhar de noite.
Guilherme - Está bem. Quando eu for levarei o
tecido.
Pathelin - De modo algum. Então vou deixar um
comerciante conceituado como o senhor, filho de um grande amigo
meu, carregar uma peça de tecido? Absolutamente! Isso
é bom para gente sem importância.
Guilherme - Mas... Não senhor... Eu posso levar.
Está bem assim.
Pathelin (apanhando o tecido) - Não consinto de modo
algum. Só assim o senhor virá à minha
casa.
Guilherme - Mas eu posso ir levando o tecido.
Pathelin - Será que o senhor desconfia de mim?
Guilherme - Não. Mas acho inconveniente que o senhor
ande com tecidos debaixo do braço pela cidade.
Pathelin - E o senhor ficaria bem carregando tecidos?
Não consentirei nunca em tal coisa.
Guilherme - Nada de cerimônias. Doutor
Pathelin, eu posso levar muito bem.
Pathelin - Se o senhor não tem confiança em
mim, se acha que sou desonesto, é outra coisa. Mas neste
caso não lhe faço a injúria de pensar que o
senhor me julga de tal maneira.
Guilherme - Não julgo, não. Enfim, se
não há outro meio...
Pathelin - Está claro que não há outro
meio. Venha sem falta às seis horas. Posso garantir que o
senhor não terá comido em sua vida muitos patos como
o que o senhor vai comer em minha casa. Quanto ao vinho, prefiro
nem falar. O senhor mesmo o julgará. A propósito,
como quer que lhe pague? Em ouro ou em prata?
Guilherme - Prefiro em ouro, se for de bom peso.
Pathelin - Meu ouro é antigo. É do tempo do
falecido rei.
Guilherme - Então não se esqueça de
tê-lo à mão quando eu lá chegar.
Pathelin - Sim, mas o senhor só receberá
depois do jantar. Por Deus mestre Guilherme, só assim
o senhor conhecerá o caminho de minha casa. Seu falecido pai
o conhecia muito bem. Nunca deixava de me cumprimentar quando
passava. Mas o senhor não se dá com gente pobre...
(sai)
Guilherme -- Pelo amor de Deus! Eu também sou pobre.
Irei lá jantar. Não se esqueça de ter meu ouro
à mão.-- (Só) - O dinheiro que ele vai me
pagar ficará bem guardado. Bem diz o ditado que não
há um esperto que não encontre outro mais esperto.
Esse advogado, mestre da trapaça, levou por doze escudos um
tecido que não vale nem nove...
Cena III
Casa de Pathelin - Sala
Pathelin (entrando) - Então?
Guilhermina - Então o que?
Pathelin - Eu não lhe dizia? Pode jogar fora seu
vestido velho.
Guilhermina - Que diabo é isto?
Pathelin (desdobrando o tecido) - Veja e creia.
Guilhermina - Virgem Nossa Senhora! Algum cliente deixou
isto como penhor? Você comprou fiado? Meu Deus, quem
pagará?
Pathelin - Quem pagará? Mas já está
pago e bem pago. Posso afirmar a você que o comerciante que
me vendeu não é nenhum tolo.
Guilhermina - Já sei. Você prometeu, mediante
uma assinatura ou juramento, pagar o tecido dentro de algum tempo.
Belo trabalho! Quando chegar o termo, como não haverá
dinheiro, eles virão e levarão tudo.
Pathelin - Deixe estar que não levariam grande
coisa... Mas não se preocupe, torno a repetir que o tecido
já está pago e que eu nem assinei contrato nem fiz
juramento algum.
Guilhermina - Vá enganar a outra. Não se
esqueça de que estamos casados já há alguns
anos. Conheço você como a palma da minha
mão.
Pathelin - Não temos tempo a perder, por isso vou lhe
contar o caso em duas palavras. Você conhece o mestre
Guilherme Côvado? Pois bem, é o comerciante
mais avarento e ladrão que já vi, tal qual seu
falecido pai e toda a canalha de sua família. Pois muito
bem. Eu, com a minha lábia, abordei-o fazendo mil elogios a
um e ao outro, assinalando a semelhança entre ambos,
fazendo-lhe tantas cortesias, que quando chegou a hora de me fiar o
tecido, apesar de gemer, não teve coragem de negar.
Guilhermina - A eterna história da raposa e do corvo
que estava pousado no alto de uma cruz de madeira com um queijo no
bico. Veio uma raposa, que vendo o queijo, se perguntava: "Como o
terei?" e se pôs diante do corvo. A raposa disse ao corvo:
"Ah! Que corpo maravilhoso você tem e como é melodioso
seu canto!" O corvo, grandessíssimo idiota, ouvindo falar
dessa maneira sobre o seu canto, abriu o bico para grasnar e o
queijo veio à terra. Mestre raposa abocanhou o queijo e
lá se foi. O mesmo se deu com este tecido. Você tapeou
o outro com adulações e o roubou, usando belas
palavras. Na verdade, você conseguiu o tecido pela
lisonja.
Pathelin - Sem tirar nem pôr. Enfim, prometi-lhe pagar
aqui na hora do jantar. Copiosamente regado com um vinho que ainda
está nas uvas. E prometi também, um pato que ainda
está no ovo.
Guilhermina -- Não se esqueça, pelo amor de
Deus, do pelourinho! Saiba que todo mundo grita com você por
causa de suas trapaças.
Pathelin -- Agora chegou a sua vez de trabalhar.
Guilhermina - Que devo fazer?
Pathelin - Coisa muito simples. Jurar por todos os santos do
céu que há onze meses estou de cama, doente, louco,
furioso, fazendo o desespero de todos os médicos. O resto
é por minha conta. Você saberá fazer isso?
Guilhermina - E muito mais. Não é em
vão que sou sua esposa. Chorarei lágrimas de sangue,
hei de convencer o comerciante de que ele está louco ou que
viu o diabo.
Pathelin - Ótimo! Vamos preparar a farsa. Vou
deitar-me, porque Guilherme não deve tardar.
(sai)
Guilhermina (só) - Valha-me Deus! E Santo Onofre
Milagroso, ajudai-me nessa empresa, que eu vos prometo dar uma vela
de cera... Se acaso tiver o dinheiro que ela custa antes de minha
morte. (sai)
Cena IV
Primeiro na rua, diante da casa de
Pathelin. Depois no interior. Sala. Entardecer.
Guilherme (na rua) - Creio que já
está na hora de beber o vinho e comer o pato lá do
tal doutor Pathelin! Ah! Meu querido dinheiro, até
que enfim vou te ver. Meu coração quase pára
quando me lembro que vendi fiado uma peça de fazenda. Ho!
Ho! Dr. Pedro Pathelin.
Guilhermina - Que barulho é esse? Se o senhor tem
alguma coisa a dizer, fale baixo.
Guilherme - Deus vos guarde, minha senhora.
Guilhermina - Fale baixo.
Guilherme - Mas o que há?
Guilhermina - Eu lhe peço, pelo amor de Deus,
não grite!
Guilherme - Onde está seu marido?
Guilhermina - Meu Deus, onde é que o senhor queria
que ele estivesse?
Guilherme - O doutor Pathelin não está
aí?
Guilhermina - Quisera Deus que ele estivesse com bastante
saúde para não estar aqui.
Guilherme - Mas o que quer dizer com isto?
Guilhermina - Coitado do homem... Ele está na cama...
Onze meses de martírio!
Guilherme - Quem?
Guilhermina - Desculpe, mas não posso ficar aqui
muito tempo. Tenho que voltar para perto do meu doente.
Guilherme - Mas quem é o seu doente?
Guilhermina - Quem há de ser senão o meu
marido?
Guilherme - O doutor Pedro Pathelin?
Guilhermina - Não consta que eu tenha outro
marido.
Guilherme - Mas não há quinze minutos que ele
esteve comigo, e por sinal me comprou fiado uma peça de
tecido. Vim aqui para receber o dinheiro.
Guilhermina - Que brincadeira mais sem graça!
Não se está em hora de diversões...
Guilherme - São 84 escudos. Quero já o meu
dinheiro!
Guilhermina - O senhor está doido? Vá contar
suas lorotas a outra, ou se é uma brincadeira, ela
está muito fora de hora.
Guilherme - Faça o favor de acabar com as suas
lorotas e vá chamar o doutor Pathelin.
Guilhermina - Diabos levem o senhor! Então é o
momento de fazer um homem agonizante sair da cama?
Guilherme - Mas não é aqui a casa do doutor
Pedro Pathelin?
Guilhermina - Quantas vezes o senhor quer que lhe diga que
sim? Está louco, vá para o hospício.
Guilherme - A senhora me diz para falar baixo e grita mais
que um general em manobras...
Guilhermina - É que o senhor me faz perder a
paciência.
Guilherme - Basta de histórias. Já lhe disse
que o doutor Pathelin me comprou sete varas de tecido hoje,
agora mesmo.
Guilhermina - Que? O senhor continua na sua loucura? Meu
pobre marido há onze meses está doente, pregado na
cama, gemendo de cortar o coração, havia de ter hoje
que comprar tecido na sua loja? Meu Deus! Como o mundo está
cheio de gente perversa!
Guilherme - Vamos! Meu dinheiro!
Guilhermina - O senhor está bêbado? Só
pode ser isso.
Guilherme - Bêbado eu? Que desaforo!
Guilhermina - Só um bêbado pode dizer que um
homem doente, paralisado pelo sofrimento, saiu para comprar tecido.
Só se fosse uma mortalha.
Guilherme - Esta história vai continuar?
Guilhermina - Vamos, fale baixo ou vá embora. As
pessoas maledicentes vão dizer que o senhor veio aqui por
minha causa. Os médicos vão chegar a qualquer
momento.
Guilerme -- Pouco me importa se pensem bem ou mal. Já que
não sei o que penso.
Pathelin (de dentro) - Guilhermina, um pouco de
água de rosa. Meu Deus, você me deixa sozinho aqui!
Água, venha depressa!
Guilhermina - Aí está o que o senhor fez. O
pobre homem acordou.
Guilherme - Ainda bem.
Pathelin - Guilhermina, vem depressa expulsar toda
esta gente preta que está aqui fazendo caretas para mim.
Socorro!
Guilhermina - Que é isso, meu bem? Você
não tem juízo de levantar assim?
Pathelin - Olha esse frade preto que está voando.
Vocês não estão vendo? Peguem, peguem!
Ponham-me uma estola para o exorcismo. Meu Deus, como ele
voa...
Guilhermina - Veja como ele sofre, coitado!
Guilherme - Mas ele caiu doente ao voltar da feira?
Guilhermina - Que feira?
Guilherme - Onde tenho minha loja de tecidos.
Pathelin - Ah! É o senhor, doutor João? Chegou
a tempo. Seus remédios me deram tanta cólica que
estou que não posso. Hoje pus para fora duas coisinhas
pretas, mais duras que pedras, redondas como bolotas. Não
aguento estas cólicas!
Guilherme - Que é isso? O senhor não se lembra
de mim? Meu dinheiro?
Pathelin - Eu não tomo mais nenhum remédio que
o senhor me receitar. Além de serem amargos como fel, fazem
uma tal revolta no meu ventre que parece que tenho um
exército na barriga.
Guilherme - Que é isso? Sou eu quem está louco
ou é o senhor? Mas o meu dinheiro, onde está?
Pathelin - Corram, corram! Aí vem eles, socorro! Eles
estão me matando...
Guilhermina - Coitadinho, em que estado está.
Guilherme - Não sei o que diga, nem o que pense. Foi
ele que veio à minha loja? Foi outro? Só se fosse o
diabo. Vamos, minha senhora, diga-me, a senhora não tem um
pato cozinhando?
Guilhermina - Ora vejam, que pergunta! Havia eu de ter um
pato cozinhando, quando meu marido está neste estado? Mestre
Guilherme, procure um médico, o senhor não
está bem da cabeça.
Guilherme - É possível, é
possível... A senhora me estonteou tanto que já nem
sei onde estou. Foi ele? Não sei, meu Deus! Ah! Meu rico
dinheiro! Que pesadelo! Enfim, creio que não há mais
nada a fazer... Adeus... Será possível? (sai)
Pathelin - Ele já foi?
Guilhermina - Psiu! Ele está perto... Rosna mais que
um velho cão de caça. Parece que está sonhando
acordado.
Pathelin - Quero sair da cama.
Guilhermina - Espere um pouco, ele pode ouvir.
Pathelin - Ele, tão desconfiado, acabou caindo como
um patinho.
Guilhermina - É para descontar o que ele rouba dos
outros. O homem só falava de pato, sem perceber que ele era
um, e de que tamanho! (ri muito)
Pathelin - Não ria assim, ele pode escutar.
Guilhermina - Não posso me conter quando me lembro da
cara dele. Enfim, consegui pô-lo para fora daqui.
Pathelin - Silêncio, que ele pode voltar.
Guilherme (na rua) - Será possível que eu
tenha sido enganado por um advogado chinfrim? Um
joão-ninguém? Não! Volto lá e hei de
arrancar o meu dinheiro custe o que custar. Vejam só a tal
mulher dele está rindo... Esperem aí. Estou muito
grosso para pavio.
Guilhermina - Meu Deus, ele me ouviu. Está voltando.
Depressa, vá se deitar.
Guilherme - Ho, ho, abram a porta.
Guilhermina - Que gritaria!
Guilherme - A senhora está rindo, ou pensa que
não ouvi?
Guilhermina - Tenho muito motivo para rir, na verdade.
Guilherme - Meu dinheiro. Exijo o meu dinheiro.
Guilhermina - Lá vem o senhor com sua
história. É para me divertir? Escolheu muito mal o
momento. Meu marido já me dá bastante diversão
de um outro gênero. Ele canta, chora, ri, dança, fala
em línguas diferentes, de maneira que choro e rio ao mesmo
tempo.
Guilherme - Não tenho nada que a faça rir ou
chorar, o que eu quero é ser pago, ouviu?
Guilhermina - O senhor continua com sua
extravagância?
Guilherme - Não estou habituado a ser pago com
palavras. A senhora pensa que tomo gato por lebre?
Pathelin - Vamos rápido! De pé. A rainha das
guitarras deu à luz vinte e quatro guitarrinhas. Ela
está aí, façam-na entrar. Ela vem me convidar
para o batismo. Quero ser seu compadre.
Guilhermina - Ah, pense em sua alma, meu bem. Deixe em paz
as guitarras.
Guilherme - Que contadores de sandices são esses
dois. Vamos, meu dinheiro em ouro ou prata.
Guilhermina - Será possível que o senhor ainda
não se convenceu do seu engano?
Guilherme - A senhora já pensou, bela dama, o que
significa tudo isso? Nunca fui enganado. Mas, palavra de honra, ou
o tecido será pago ou restituído ou então a
senhora e seu marido serão enforcados. Juro por Deus!
Guilhermina - Que coragem, atormentar assim um doente! Estou
vendo bem pelos seus modos que o senhor está fora do seu
juízo. Valha-me Deus! Não bastava meu marido.
Guilherme - Que raiva que tenho de perder assim o meu
dinheiro...
Guilhermina - Que loucura! Faça o sinal da cruz. O
senhor deve estar com uma legião de demônios avarentos
no corpo. Abrenúncio!
Guilherme - Quero ser esquartejado se tornar a vender tecido
fiado em minha vida.
Pathelin - Madre de Dios, por mi fé, quiero irme. Que
me quieres niña? Venga. Vote monstro. Quieres dinero? No lo
tengo, no lo tengo...
Guilhermina - Ele tem um tio espanhol, que era irmão
do filho da tia-avó dele, por isso ele fala espanhol...
Guilherme - Ele veio de mansinho e carregou a peça
debaixo do braço. Será possível?
Pathelin - Kome hier. Komme hier. Ach! Was ist das? Mein
Gott! Gott! Wie ist dieser kaufmann!
Guilherme - Mas como ele fala tantas línguas, meu
Deus...
Guilhermina - Sua mãe era sobrinha de um neto de
alemão. É por essa razão que ele fala essa
língua...
Pathelin - Ho! Signore mio, que me vol cose mercatore?
Argento? Nom abiamo noi e si volio uno piccolo asso, lo
daré, stupido huomo!
Guilherme - Que é isso? Deu-lhe na teima de falar
todas as línguas do mundo? Se ao menos ele me desse meu
dinheiro eu ia embora.
Guilhermina - Que homem o senhor é! Já se viu
maior maldade? Quando há de se convencer da verdade?
Pathelin - If you please, sir. What will you? Money? I
don't... Get out... Get out... Oh God! Oh God!
Guilherme - Que língua renegada. Será
possível que ele nunca se cale?
Guilhermina - O avô do irmão do cunhado dele
era inglês e lhe ensinou a falar a língua.
Guilherme - Minha nossa senhora, estarei sonhando? Foi ele
ou foi outro que foi à minha loja, ou foi o demo por ele?
Juraria que foi ele quem esteve comigo há meia hora... Estou
tonto... Não sei o que pensar...
Pathelin - Et bona dies sit vobis - Magister amantissime,
Pater reverendissine. Quomode bralis, quae nova? Parisius non sunt
ova.
Guilhermina - Meu Deus, ele está falando latim.
É sinal próximo da morte, que os anjos e serafins da
corte celeste o assistam...
Guilherme - Mas que será isso, meu Deus? Ele vai
morrer falando, não há sombra de dúvida, ele
está muito mal. Pobre homem. É melhor que eu me
vá, ele pode dizer segredos que eu não deva ouvir.
Certamente não foi ele quem me tirou o tecido. Deus vos
guarde, bela dama. Desculpe-me pelo incômodo. Mas jurava que
era ele que tinha me comprado o tecido fiado...
Guilhermina - Adeus, que os anjos o acompanhem. Reze por
mim. O senhor bem vê em que sofrimento estou.
(Guilherme sai) Então sou ou não sou uma digna
esposa? Meu Deus, como conseguimos enganá-lo...
Pathelin - Ele saiu resmungando, estonteado, jurando ter
visto o diabo em meu lugar. Bom proveito lhe faça.
Guilhermina - Há-há-há! (entra e
vira-se meio confusa para Pathelin) Você não
acha que o que nós fizemos foi muito feio?
Pathelin (embaraçado) - Bem... eu... Ora,
ladrão que rouba ladrão...
Cena V
Rua, anoitece.
Guilherme (só) - Foi sem
dúvida o diabo que veio me tentar na forma daquele advogado.
Antes tenha o meu tecido do que a minha alma. Afinal é bem
verdade que quem faz a Deus, paga ao diabo. Meus pobres lucros,
já se foram em boa parte. Mas o que é isto? Já
estou farto de mentiras. Todo mundo rouba o que tenho. Serei eu o
rei dos desgraçados? Até meu pastor me passou a
perna..... meu pastor! A quem sempre tratei tão bem, mas ele
não ficará rindo à toa! Virá pedir
piedade, pela Virgem Coroada!
Teobaldo (entrando) - Deus vos dê bom dia! Doce
senhor!
Guilherme - Ah! Aí está você, patife
desabusado, desalmado! Que belo servo! O que você quer?
Teobaldo - Com todo respeito, meu bom senhor. Um homem de
roupa listrada.... todo esquisito.... falou do senhor, meu amo! E
de uma tal de intimação de justiça. Eu
não sei o que é isso! Por Santa Maria, não
entendi nada de nada!
Guilherme - Mataste a pauladas mais de um animal....
hás de me pagar as sete varas.... quero dizer, a
matança das ovelhas e o dano que me vens fazendo há
dez anos.
Teobaldo - Não acredite em calúnias, meu bom
senhor, porque pela minha alma.....
Guilherme - Por Nossa Senhora, hás de devolver as
sete varas de tecido..... quero dizer...
Teobaldo -- Qual tecido? Ah, meu senhor! Parece que tem
outra coisa que está deixando o senhor encolerizado. Por
São João Padroeiro, eu prefiro não dizer uma
palavra quando o senhor está neste estado.
Guilherme -- Deixe-me em paz! Vai-te e seja pontual no
comparecimento ao tribunal.
Teobaldo -- Senhorzinho...... vamos fazer um acordo?
Guilherme -- Tua culpa é bem clara, não quero
saber de acordo antes da citação do Juiz. Pois
o quê! Se não me defendo todos me enganarão
cada vez mais!
Teobaldo (só) - Deus vos dê alegria, meu
senhor.... Então preciso me defender.....dessa vez o
negócio é sério....tenho que arrumar um
advogado....me disseram que por aqui tem um.... Ô de casa!
Tem gente?
Pathelin -- Quero ser enforcado se não é ele
que volta.
Teobaldo - Deus esteja com o senhor! Deus te guarde! O
senhor não é advogado?
Pathelin - Sim, e você com isso?
Teobaldo (humilde) - É que queria consultá-lo
sobre um caso muito grave...
Pathelin - Bem... Vejamos...
Teobaldo - Eu recebi hoje, por um homem de roupa toda
listrada a ordem de comparecer diante do Juiz... O
espertalhão do meu patrão, para quem eu trabalhei
muito tempo - pastoreando o rebanho - me pagava
pouquíssimo.... aquele sovina, mão de vaca,
pão duro....
Pathelin -- Bem, bem, bem... isto não vem ao caso.
Diga sem mentir o que vez. Teobaldo -- ...tá me
acusando. Quer que conte tudo?
Pathelin -- Sim, com certeza... deve-se dizer tudo ao seu
advogado.
Teobaldo -- Pois a verdade verdadeira, meu
senhor....é que matei umas ovelhinhas a
pancadas....várias pancadas! E para que meu patrão
não pudesse me censurar eu dizia que elas morriam de sarna -
Ah! dizia ele, não as deixe com as outras! - Claro! eu
dizia...Mas eu executava a ordem de outra maneira, porque eu... por
São João.... as comia. Tanto fiz isso! Muito bati e
matei, que ele acabou percebendo. Quando se viu enganado, ai que
Deus me ajude! Ele mandou me vigiar. Porque as ovelhinhas berravam
tanto, o senhor entende, né? Até que me pegaram em
flagrante. Por isso queria pedir para o senhor, que juntos
fizéssemos ele cair numa armadilha. Sei que lá tudo
é do lado dele... mas se o senhor quiser vai encontrar um
jeitinho de inverter a situação.....
Pathelin - O negócio é grave. Roubo,
extorsão, dolo. Estás perdido.
Teobaldo - Meu Deus, e eu que não pensei fazer mal
algum...
Pathelin - Me responde. Você tem dinheiro para pagar o
advogado que o defender?
Teobaldo - Tenho sim, uns escudos de ouro, daqueles que tem
uma coroa marcada.
Pathelin - Ah, então sua causa é boa. É
ótima mesmo... Vou lhe ensinar um excelente meio para sua
defesa. Venha cá. Você (cochichando) dzz...
entendeu?
Teobaldo - Não é difícil. Farei
exatamente o que o senhor está mandando.
Pathelin - Então fique tranqüilo. Garanto o bom
resultado do seu processo. Por Nossa Senhora de Bolonha, acho que o
Juiz já abriu a audiência, porque costuma ser
sempre às seis horas.(olhando em torno) Agora vá-se
embora. Não convém que vejam você comigo.
(Teobaldo sai) Alguma coisa há de vir. Este pastor
não me parece tão inocente como se faz, mas enfim...
Se ele não tem escudos de ouro, alguma coisa há de
ter. E na situação em que estou, tudo que cai na rede
é peixe.
Cena VI
O Tribunal Entram primeiro o
Juiz e escrivão, que tomam seus lugares. A seguir
Guilherme e, por fim Pathelin, seguido do
pastor.
Pathelin - Deus vos dê toda a
felicidade que o vosso coração deseja, senhor
Juiz.
Juiz - Seja bem vindo, doutor. Tome seu lugar.
Pathelin - Salvo vosso respeito, estou bem aqui.
Juiz - Se há alguma coisa a debater, vamos depressa
com ela para que possa levantar a sessão.
Guilherme - Meu advogado vem já. Ele está
acabando um negócio rápido. Peço o favor de
esperar um pouquinho.
Juiz - Não pode ser. Tenho outras causas para ouvir.
Se a parte contrária está presente, exponha o caso
rapidamente. O senhor não é queixoso?
Guilherme - Sim senhor.
Juiz - Quem é o defensor do réu? Está
presente?
Guilherme - Sim, ei-lo que não diz uma palavra,
só Deus sabe o que pensa.
Juiz - Já que todos estão presentes, comecemos
logo.
Guilherme - Eis minha queixa: eduquei por caridade este
pastor aqui presente e quando o julguei bastante forte, mandei-o
para o campo para apascentar meus rebanhos. Juro por Deus, senhor
Juiz que é tão verdade como estar o senhor
sentado nessa cadeira e esse miserável, abusando da minha
confiança, fez tal morticínio entre as minhas ovelhas
que...
Juiz - Vejamos, ele era seu empregado? O senhor lhe pagava
ordenado?
Pathelin - Qual nada, senhor Juiz, o pobre pastor
não recebia vintém.
Guilherme (reconhecendo Pathelin) - Seja eu herege se
não for ele. Não há erro possível!
(Pathelin tampa o rosto com a mão)
Juiz - Por que o senhor levanta assim a mão, doutor
Pathelin? Está com dor de dentes?
Pathelin - Sim, nunca tive uma dor igual. Mas... continuemos
o debate.
Juiz (a Guilherme) - Vamos, continue, acabe
depressa.
Guilherme - É ele, não há
dúvida, foi a ele que vendi sete varas de tecido.
Juiz - Por que o senhor fala de tecido?
Pathelin - Ele delira, senhor Juiz, porque não
sabe concluir. Naturalmente ensinaram-lhe a lição
para recitar diante do tribunal e ele se esqueceu, por isso vai
dando por paus e por pedras.
Guilherme - Seja eu enforcado, se foi a outro que vendi meu
tecido de Ruão.
Pathelin - Onde esse malvado vai buscar estas
invenções para aumentar a culpa de pastor que
é sua vítima? Ele quer dizer, eu compreendo muito
bem, que o pastor vendeu o tecido de que foi feita minha roupa.
Vejam que maldade! Não basta a acusação
mentirosa de que o pastor lhe roubou só as ovelhas, é
preciso acusá-lo de ter roubado um tecido que comprei
há mais de três anos.
Guilherme - Deus me dê febres quartãs se o
senhor não tem o meu tecido.
Juiz - Calma, onde estamos nós? O senhor não
sabe o que diz. Volte à sua causa sem fazer o tribunal
perder tempo com suas asneiras.
Pathelin (rindo) - Estou louco de dor de dentes e não
posso deixar de rir. Ele está tão embaraçado
que não sabe mais o que dizer. Senhor Juiz, é
preciso lembrar-lhe onde ele estava.
Juiz - Vamos, voltemos a vaca fria ....quer dizer, a suas
ovelhas. O que aconteceu?
Guilherme - Ele comprou sete varas a doze escudos cada.
Juiz - Estamos todos loucos? Onde o senhor pensa que
está?
Pathelin - Senhor Juiz, esse homem toma V.Ex.ª,
com perdão da palavra, por um tolo. A julgar pelo seu
exterior, no entanto, parece um homem de bem. Proponho que se
interrogue o acusado.
Juiz - O senhor tem razão. Ele deve conhecê-lo
, pois o queixoso é seu patrão. Adianta-se, fale.
Teobaldo - Bée!
Juiz - Pronto. Está aí um outro caso. Que
história é essa de bée? Eu sou por acaso cabra
ou bode? Vamos, fale direito.
Teobaldo - Bée!
Juiz - Você está caçoando de mim?
Pathelin - Pobrezinho! Não senhor Juiz, jamais
ele faria isso. É porque ele é um atoleimado pelos
maus tratos do patrão.
Guilherme - Quero ser apedrejado se não foi ao senhor
que vendi meu tecido! (ao Juiz) V.Ex.ª não sabe
com que malícia...
Juiz - Cale-se! O senhor está louco? Deixe de parte o
fato acessório e venha ao fato principal.
Guilherme - Está bem, juro não tocar mais no
caso do tecido. Mas o caso me faz enraivecer... Porém meus
lábios não se abrirão mais sobre esta
questão. Por hoje ao menos, porque isso não
ficará assim. Eis portanto, o caso do pastor: eu dizia que
ele guardava sete varas de tecido, quer dizer, meus rebanhos,
perdão, foi um engano. Esse senhor pastor, quando devia
estar nos campos, disse-me que eu teria em pagamento escudos de
ouro... Não, quero dizer, que quando ele começou a
guardar os meus rebanhos, prometeu-me um excelente jantar com
pato... Mas o que estou dizendo? Desculpe-me, senhor Juiz,
queria dizer que esse patife do pastor jurou-me guardar sem
traição nem dolo as minhas ovelhas. Pois bem, ele as
matava sem piedade e agora nega tudo: dinheiro e tecido. Ah! Doutor
Pathelin, isso não se faz! Sim, senhor Juiz,
este canalha de pastor matava-me sem temor de Deus todas as
ovelhas; quando ele se pilhou com a peça de tecido debaixo
do braço, disse-me que fosse à sua casa...
Juiz - Cale-se! Cale-se! Não encontro nem rima, nem
razão em toda esta chatíssima conversa. O senhor
é um louco! Ora vejam: só fala de ovelhas, depois
emenda com tecido, com pato, com jantar, com escudos de ouro...
Qual! Só mesmo um louco! Isto aqui não é
manicômio.
Pathelin - Naturalmente é porque ele tem a
consciência pesada de não pagar ao pobre pastor e
ainda por cima inventar um processo ao coitado.
Guilherme - O senhor faria bem em calar-se, ouviu? Meu
tecido onde está ele? Não é o senhor que o
tem?
Juiz - O que é que o doutor Pathelin tem?
Guilherme - Nada, senhor Juiz. Isso não vem ao
caso. O que eu posso afirmar é que o doutor Pathelin
é o maior trapaceiro, mas isso fica para outra vez; trata-se
agora das minhas ovelhas.
Juiz - Vamos, trate de lembrar-se bem dos fatos e conclua
logo.
Guilherme - Estou confuso, senhor Juiz.
Peço-vos que interrogueis novamente esse patife. Vejamos o
que ele tem para dizer. Ele bem que sabe falar...
Juiz (irritado) - Mas...
Pathelin - O pobre pastor não pode falar por si
mesmo, nem saberá responder às
acusações que lhe forem feitas. Se V.Ex.ª
permitir, eu falarei por ele.
Juiz - O senhor quer assisti-lo? Creio que só
terá aborrecimentos sem proveito algum.
Pathelin - Nem quero ter lucro. Tenho pena de ver um
pobrezinho sem defesa, exposto às malévolas
acusações de um perverso. Quando se é honesto,
o lucro não interessa. Com permissão de V.Ex.ª,
vou interrogar o acusado. Aproxime-se, meu amigo. Você me
entende? Vamos, fale!
Teobaldo - Bée.
Pathelin - O que é? Explique-se melhor.
Teobaldo - Bée.
Pathelin - Sempre a mesma coisa. Você não
está vendo que os seus interesses estão em jogo?
Responda direito.
Teobaldo - Bée.
Pathelin - Não há nada a fazer. O pobrezinho
é idiota mesmo. Veja V.Ex.ª, senhor Juiz,
até que ponto pode ir a maldade humana. Esse homem tem
coragem de trazer perante este tribunal respeitável um pobre
idiota, vítima de seus maus tratos, para acusá-lo de
um crime que o coitado nunca poderia ter cometido, e isto porque
não quer lhe pagar o salário de anos de trabalho.
Ele, que devia ser o réu, traz ao banco dos culpados um
inocente, como ave de rapina que não quer soltar a presa por
nada. (Para Guilherme) Mas tu te enganas, homem perverso! O
Juiz, diante de quem estás, jamais se deixará
enganar pelos malvados. Sua alta inteligência, seu profundo
saber, já descobriram na incoerência de tua queixa,
como na idiotice do pastor, onde esta a verdade...
Juiz - O senhor tem razão. Este pastor é um
débil mental. Não pode, portanto, responder a
processo. Aumentis non suht subjectis juris.
Guilherme - Juro que V.Ex.ª se engana. Juro que esse
patife tem mais bom senso do que eu.
Pathelin - Só esta reflexão mostra bem o que
é o queixoso. Diante de um tribunal que reconhece a
debilidade mental do pobre pastor, ele ousa proclamar o perfeito
juízo do acusado. Senhor Juiz, para evitar delongas
ineptas, mande embora o pastor.
Juiz - Sim, é o que resta a fazer.
Guilherme - Ele será absolvido sem que eu tenha
pleiteado?
Juiz - Por que não? Se o senhor, além de
louco, não diz coisa com coisa, e ele é um enfermo
mental.
Guilherme - Suplico a V.Ex.ª que me deixe ao menos
expor minhas conclusões. Juro-lhe que em tudo que disse
não houve mentira nem desejo de caçoada.
Juiz - O que prova que o senhor é realmente louco e
eu não estou aqui para perder tempo com loucos.
Guilherme - E eles vão se embora sem que eu seja
ouvido?
Juiz - O senhor não acha que já fez o tribunal
perder muito tempo?
Guilherme - Que a causa seja ao menos adiada...
Juiz - Adiada? Para quê? O senhor é um louco e
esse rapaz um sandeu. Com tal gente é impossível um
processo.
Pathelin - V.Ex.ª diz bem. Não é
possível lidar-se com tais pessoas, por isso peço a
quitação do meu cliente.
Juiz - Com toda razão. (Para Teobaldo)
Vá, você está livre. O tribunal reconhece a sua
inocência. Não se preocupe mais com as calúnias
levantadas contra sua pessoa, não volte nem que um oficial
de justiça vá intimá-lo.
Guilherme - Mas isto não pode ser, senhor
Juiz! Esse pastor é um tratante, um ladrão...
Eu posso...
Pathelin -- O senhor persiste na sua loucura?
Guilherme O senhor devia ter vergonha e não falar
mais comigo, ouviu? Meu tecido, onde está ele?
Juiz - Vamos, eu tenho mais que fazer do que estar ouvindo
loucuras... Doutor Pathelin, o senhor quer jantar
comigo?
Guilherme - Jantar?
Pathelin - Agradeço-lhe muito, mas os meus
dentes...
Juiz - É verdade, eu já havia me esquecido.
Deus vos guarde! (sai)
Guilherme - Ah, doutor Pathelin, que diabo me leve se
o senhor não é o maior trapaceiro do mundo!
Então... meu tecido, meu dinheiro, sua doença?
Pathelin - Sempre a mesma coisa. O senhor devia mudar de
nota, porque já está monótona. Eu doente? Esta
é grande!
Guilherme - Não está doente? Espere aí,
vou já já à tua casa... (sai).
Pathelin - É isto, vá ver se eu estou doente.
(Para Teobaldo) Então Teobaldo, teve ou
não teve sucesso a minha idéia?
Teobaldo - Bée!
Pathelin -- Como bée? Não precisamos
disso!
Teobaldo -- Bée!
Pathelin -- Sabes o que mais? Peço que sem mais
balir, penses em me pagar. Teobaldo --Bée!
Pathelin -- Não tenho o que fazer com os seus
bées! Paga-me depressa. Teobaldo -- Bée!
Pathelin - Vamos, fale direito! Já acabou a
farsa.
Teobaldo - Bée!
Pathelin - Que é isso? Você quer me burlar, a
mim, o homem mais esperto desta cidade? Vamos, meu dinheiro,
já senão vou buscar um soldado.
Teobaldo - Bée!
Pathelin - Não tirarei nada! Será
possível que eu tenha caído no meu próprio
ardil? E que um camponês, uma criança, uma raposinha,
engana uma velha raposa matreira? Espere um pouco,
miserável, eu vou buscar quem faça você falar.
Olá soldado! Olá! Soldado! (sai)
Pathelin (voltando) - O que?
Teobaldo - Béé!
FIM
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