Companhia de Teatro da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco

Valsa nº 6

Adaptação da peça de Nelson Rodrigues encenada ao final de 2003. A peça original é um monólogo, mas na adaptação o papel foi distribuido entre quatro atrizes e dois atores. A peça foi utilizada como base para o Júri Simulado da Semana de Recepção aos Calouros de 2004, para tanto os mesmos atores da peça encenaram seus papéis no júri. Uma sinopse jurídida da peça teve que ser elaborada, onde certas informações tiveram que ser inventadas, sem perder o mistério por trás da morte de Sônia, para viabilizar o júri. O doutor Junqueira, acusado do crime, foi absolvido.

Texto original

Reproduzido de http://www.geocities.com/ii_nunabox/valsa.htm.

Valsa Nº 06

Peça em Dois Atos
Nelson Rodrigues

 

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Personagem

Sônia, menina assassinada aos 15 anos.



(CENÁRIO SEM MÓVEIS. APENAS UM PIANO BRANCO. FUNDO DE CORTINAS VERMELHAS. UMA ADOLESCENTE SENTADA AO PIANO. VESTIDA COMO QUE PARA UM PRIMEIRO BAILE. ROSTO ATORMENTADO, QUE FAZ LEMBRAR CERTAS MÁSCARAS ANTIGAS. MÃOS POUSADAS SOBRE AS TECLAS. AO FUNDO, O RUMOR DO BOMBO, QUE ACOMPANHARÁ TODA A AÇÃO. AO ABRIR-SE O PANO A CENA ESTÁ MERGULHADA NA SOMBRA. APENAS UMA ÚNICA LUZ, INCIDINDO SOBRE O ROSTO DA MOCINHA. E, ENTÃO, ELA EXECUTA UM TRECHO DA VALSA N9 6, DE CHOPIN. SEU ROSTO PASSA A EXPRIMIR PAIXÃO, QUASE O ÊXTASE AMOROSO. CORTA BRUSCAMENTE A MÚSICA. ILUMINA-SE O RESTO DO PALCO. A MOCINHA ERGUE-SE, SEM SAIR DO LUGAR. TERROR.)

 

MOCINHA
(aumentando progressivamente a voz, até ao grito)
Sônia!... Sônia!... Sônia!...

(para si mesma)
Quem é Sônia?... E onde está Sônia?

(rápida e medrosa)
Sônia está aqui, ali, em toda a parte!

(recua)
Sônia, sempre Sônia...

(baixo)
Um rosto me acompanha... E um vestido... E a roupa de baixo....

(olha para todos os lados; e para a platéia, com meio riso)
Roupa de baixo, sim,

(com sofrimento)
diáfana, inconsútil...

(com medo, agachada numa das extremidades do palco)
O vestido que me persegue... De quem será, meu Deus?

(corre, ágil, para a boca de cena. Atitude polêmica)
Mas eu não estou louca!


(lá cordial)
Evidente, natural!... Até, pelo contrário, sempre tive medo de gente doida!

(amável e informativa, para a platéia)
Na minha família — e graças a Deus — nunca houve um caso de loucura...

(grita, exultante)
Parente doido, não tenho!

(sem exaltação, humilde e ingênua)
Só não sei o que estou fazendo aqui...

(olhando em torno)
Nem sei que lugar é este.

(recua, espantada; aperta o rosto entre as mãos)
Tem gente me olhando!

(olha para os lados e para o alto. Lamento maior)
Meu Deus, por que existem tantos olhos no mundo?

(sem transição, frívola e cordial)
Depois eu me lembro de tudo o que fui, de tudo o que sou.

(em tom de palestra)
Então, o Dr. Junqueira chamou mamãe e disse...

(anda como um desses veteranos que têm uma perna de pau, numa imitação de médico)

(em aparte)
No tempo de mamãe usava-se espartilho, róseo e de barbatana.

(frívola)
Mamãe está chorando.. . Papai, ao lado, nervosíssimo!

(novamente apavorada)
Mas que foi que aconteceu, ora essa?

(frívola)
Dr. Junqueira diz..

(imitação de velho)
Desequilíbrio mental — he! he! Desequilíbrio mental!

(novo pavor)
De quê? Desequilíbrio mental de quem? Não meu!

(numa revolta)
Não quero ser a primeira doida da família!

(feroz)
Já sei por que o Dr. Junqueira descobriu que eu estava doida!

(incerta)
Quem? Dr. Junqueira?

(para a platéia, bruscamente doce)
Dr. Junqueira, nosso médico, sabe?

(transida)
Ele sempre me meteu medo, o Dr. Junqueira!

(baixo, imitando um velho)
Que idade você tem, he, he!

(pavor)
Não! não!

(imitação de velho)
14 anos, já, é?

(crispada)

Não me toque!

(ressentida)
Ele disse que eu estava doida porque comecei a ver coisas. E ouvia vozes...
Vozes caminhando no ar...

(apontando)
Via mãos, rostos e pés boiando no ar.

(corre para a boca de cena, quase feliz, na ânsia de fazer a confidência divertida)
Uma noite, foi até interessante. De repente, descobri na parede do meu quarto, um rosto, sempre o mesmo. Um rosto que não saía dali!

(ri)
Fui acordar mamãe. Mamãe, vem, mamãe!

(imitação materna)
Mas que foi, minha filha? Você até assusta!

(riso, apontando)
Ali, mamãe!

Ali, onde?

(irritação doentia)
Será possível que a senhora não veja, oh mamãe!

(lenta e grave)
Mas ela não via. Nada, nada... E, então, mamãe se virou para mim. Sua vontade foi gritar. Por que não grita?

(exasperação)
Grite, mamãe, grite!

(bruscamente doce)
Recuou, assim.

(grita)
Mamãe, aonde a senhora vai? Volte!

Uma neblina, uma espécie de nuvem envolveu mamãe!

(ri, feroz)
Ela se debatia dentro da neblina!

(baixo)
Eu sentia uma dor cravada na minha fronte!

(fazendo coro para si mesma)
Chamem a Assistência!
Médico!
Assistência!
Dr. Junqueira!
Nossa Mãe!
Dr. Junqueira vem já! Evém! Evém!

(ela própria)
Gritei.

(baixo)
Meus gritos se espalharam por toda a parte.
Meus gritos batiam nas paredes, nos móveis, como pássaros cegos.

(começa a correr, em circulo, como uma menina)
Gente coma dentro de casa.

(coro)
Bacia!
Mas pra que bacia?
Claro! Bacia!

(exortação de criadas)
S. Jorge!
S. Benedito!
S. Onofre!

(de novo, informativa)
Eu própria me sentia adormecida... Adormecida entre gritos...

(gritando)
Afinal, esse Dr. Junqueira vem ou não vem?

(novamente menina)
Dr. Junqueira, não quero! Não deixo ele olhar minha garganta!

(atitude de menina)
Não admito que homem nenhum veja minhas amígdalas!

(baixo, a medo)
Evém o Dr. Junqueira... Seus passos na calçada... Depois na sala... Agora na escada...

(atitude de pudor)
Ele quer ver minhas amígdalas!

(informativa)
Mamãe se atraca com o Dr. Junqueira. Tem um ataque.

(imita os dois)
Minha filha está morrendo, Dr.!
Calma no Brasil!
Salve minha filha! Pelo amor de Deus, salve!

(sem transição, rindo)
Uma bola, o Dr. Junqueira!
Um número!

(imitação)
Minha filha escapa, Dr.?

(muda de tom)
Então, o Dr. Junqueira...

(estaca, na dúvida; vem à boca de cena)
Aqui, alguém conhece o Dr. Junqueira? Porque eu, imagine, eu guardei o nome, mas não me lembro de seu rosto e...

(aperta a cabeça entre as mãos)
Será mocinho?

(senta-se no alto da escadinha que leva à platéia)
É por isso que, às vezes, eu mesma, me julgo doida...

(num lamento)
Porque as coisas, as pessoas deslizam e fogem de mim, como cobras.

(baixo)
Sei que, naquela noite, o Dr. Junqueira acudiu de pijama e, por cima, a capa de borracha...

(ergue-se, apontando)
Mas eu só vejo o pijama, a capa e nada mais.

(desce para a platéia)
Agora mesmo. O senhor, que está aí...

(escolhe um espectador)
Sim, o senhor! Estou vendo seu paletó... E seus sapatos... Eles estão aqui...

(ri)
Posso tocá-los. . . Mas não vejo mais nada...

(irritação)
Como se não existissem pés nos sapatos...

(grita)
Mas o senhor precisa ter rosto!

(para si mesma)
Sei que as pessoas usam rosto...

(sobe a escadinha, fazendo as contas)
Cada perfil tem dois lados e...

(vira-se, feroz, para a platéia e interpela o mesmo cavalheiro)
Então, como é que o senhor não usa duas faces?

(ri)

Vamos salvar a menina, Dr.?

(informativa)
Agora, o médico vai aplicar a injeção intramuscular, indolor... Região glútea...

(jogo de cena necessário e faz a aplicação)

Pimba!

(para a platéia)
Sedol. Calmante daqui.
Efeito rápido. Tiro e queda.

(andando com a teórica perna de pau)
Agora, a doente vai dormir.

(mãe, melíflua)
Tomara, doutor!

(imitação de velho)
Deus é grande, he, he, Deus é grande!

(imita, agora, o pai, retorcendo a ponta de um bigode)
Agora, ela vai ficar sozinha! Todo mundo pra fora do quarto! Já.

(muda de tom)
Sônia!

(angústia)
O único nome de mulher, que eu guardei. Todos os outros desapareceram de minha vida.

(evocativa)
Sônia, um nome que eu acho bonito, quase branco...

(numa revolta)
Mas a mim, Sônia, não, a mim, tu não me enganas!

(olha espavorida, para todos os cantos)
Sei que estás em casa, em algum lugar da casa. . . Talvez no meu próprio quarto...

(corre para o piano e toca, em desespero, a Valsa n.º 6)

Já sei!

(já na boca de cena)
Aposto que o Dr. Junqueira é velho. Desses velhinhos camaradas, que põem colete. Usam pince-nez.
E tem asma!

(afável)
Ah, e só trata de mulher, o diabo do velhinho! De mocinha, senhora ou menina!

(ri)
No bonde, paga passagem para pequenas que ele nunca viu. Até menina de colégio, imaginem!

(novo tom)
Saíram todos do quarto... Papai, já sabe...

(retorce o bigode)
De papai — engraçado — só me lembro do bigode... Bem, mamãe, chorando, coitada! Papai acabou tendo que ralhar!

(retorcendo o bigode)
Você está fazendo um carnaval! Um autêntico carnaval! Que diabo!

(mãe, meu! lua)
Mas é minha filha!

(num soluço definitivo)
Uma menina que tem uns modos tão bonitos!

(retorcendo o bigode)
Dr., e afinal...

(perna de pau)
Caso sério!

Como assim?
O senhor até assusta!
É o diabo!
Está insinuando o quê?

(perna de pau)
Acho, isto é, quer-me parecer... Aliás posso estar enganado...

E que mais?

(para a platéia)
Foi a idade!
Foi o que?
A idade!
Cáspite!
Vejam só!
Essa que é boa!
Dr., use de sinceridade!

(perna de pau)
A menina tem 14 anos.

(mãe)
Quinze.

(perna de pau)
Ou quinze.

(mãe, espevitada)
Mas que é que tem? ~ algum crime? Será que uma moça não pode ter 15 anos?

(pai)
Continue, Dr.

(perna de pau)
A passagem... A transição.

(mãe)
Não entendi patavina!

(perna de pau)
Sua filha era menina. Transformou-se em mulher...

(num crescendo caricatural)
E houve o choque! O abalo!

(mãe)
A idade! Acho que o senhor adivinhou, Dr.!

(mãe feliz)

Minha filha tem mudado muito! O senhor não faz uma idéia!

(corre ao piano. Executa trecho da Valsa n.0 6)
Foi, sim! Um abalo muito grande. É por isso, que, às vezes, eu tenho certas esquisitices e vejo certas coisas. .

(dolorosa)
Mudei tanto!

(súbita euforia)
Antes, eu era uma menina...

(corre pelo palco, trocando as pernas, como uma Oélia louca)
E me sentia feliz. Porém, agora...

(incerta)
Que foi que mamãe disse?

(mãe)
O que Paulo fez com minha filha, não se faz!

(choro sofisticado)
Não foi papel!

(atônita)
Paulo... Meu Deus, Paulo!

(perna de pau)
Esse desgosto também contribuiu!

(de novo, atônita)
Desgosto, eu?

(frívolo)
Mas eu não tive desgosto nenhum! A não ser, bobagem sem importância...

(novo tom)
Tive, sim, um desgosto, agora me lembro... Foi num domingo... Eu estava pronta para ir à missa, quando começou a chover...

(mãe, melíflua)
Minha filha!

Eu.

(mãe)
Você não pode ir com esse tempo! Ah, não! Tenha santíssima paciência, mas eu não deixo!

(choramingando)
Então, eu vou cometer um pecado! O padre disse que não ir à missa é pecado!.

(com dignidade dramática)
Chovia, sim... E quando chove em cima das igrejas, os anjos escorrem pelas paredes.

(frívolo)
Esse foi o desgosto..

(incerta)
Outro que eu me lembro...
Não, só me lembro desse mesmo.

(sem transição, crispando-se)
Se o Dr. Junqueira quisesse pagar a passagem do meu bonde, eu não deixaria!

(evocativa)
Mas Paulo... É um doce nome... E poroso... Seria meu primo? Ou quem sabe se namorado?

(baixa a cabeça, com pudor)
Ou noivo?

(com medo)
Não, não!

(meiga)
Se eu tivesse namorado — ou noivo — ele estaria, aqui, de mãos dadas comigo...

(grita)
Noiva eu?

(interpela a platéia)
Mas de quem?

(dolorosa)

Digam!

(interroga uma espectadora)
Eu tenho a face, as mãos, os olhos de uma noiva?

(ajeita os cabelos)
Há uma grinalda, em mim, que eu não vejo? Nos meus cabelos?

(maior desespero)
Uma grinalda atormentando minha fronte?

(desespero contido)
Mas, então, terei de ser noiva de alguém!

(riso)
E se eu fosse noiva de ninguém?

(desesperada)
Paulo e Sônia... Quero-me lembrar dos dois... E...

(escandalizada)
Oh, Dr. Junqueira pagando a passagem de uma menina de colégio!

(senta-se ao piano e começa a Valsa n.0 6. Depois, breve trecho da Marcha Nupcial)
Paulo é apenas um nome...

(ergue-se e faz um gesto como se fosse apanhar um nome no ar)
um nome suspenso no ar, que eu poderia colher como se fosse um vôo breve.

(colhe o vôo)

Mas um nome vazio, sem dono.

(cai de joelhos)
Me proteja, minha Santa Teresinha!

(chora)
Eu não me lembro de nada, a não ser de nomes...

(para si mesma)
Por isso, muitos têm medo de mim... E ninguém me contraria... Porque estou num mundo... Sim, num mundo em que tudo que resta das pessoas são os nomes.
Por toda a parte.

(aponta em todas as direções)
Nomes, por todas as partes... Descem pelas pernas da mesa... Se enfiam nos cabelos...

(feroz)
Eu esbarro neles, tropeço neles, meu Deus!

(e, de fato, parece esbarrar e tropeçar em nomes)

Até, quem sabe se...

(olha para os lados)

Talvez Paulo esteja, aqui, a meu lado. .

(selvagem)
Rindo de ...

(incoerente)
Não, Paulo, não!

(voluptuosa)
Me abraçando!

(simulação de abraço. Euforia)
Ou beijando, quem sabe?
Até me admira, Paulo, que você faça essa idéia de mim!
O quê? Eu?
Ah, você não me conhece!
Pois olhe: eu nunca fui à Quinta da Boa Vista. As outras iam, me convidavam, mas eu, que esperança!

(rancorosa)

Não venha, Paulo!

(recua, arquejante)
Longe de mim, maldito!

(grave e lenta)
Sejas quem fores, eu te odeio!

(avança para a platéia)
Odeio a um Paulo que não conheço, que nunca vi... Mas...

(encara com um dos espectadores)
Se eu não conheço Paulo, ele poderá ser um de vós!...

(ri, cantarola)
Talvez um de vós seja Paulo...

(com medo)
Mas eu não vejo o vosso rosto... Nem o de ninguém aqui...

(grita)
E cada um de vós?

(percorre e examina, face a face, cada um dos rostos da platéia)
Tem certeza da própria existência?

(grita)
Respondam!

(baixo, com um riso surdo, feliz e cruel)
Ou sois uma visão minha, vós e vossa cadeira?

(corre, cambaleando, para o palco. Senta-se ao piano. Começa a Valsa nº 6)
Não!

(em desespero)
Não quero mais esta música! Qualquer uma, menos esta!

(cantarola)
Nesta rua, nesta rua,
Tem um bosque,
Que se chama, que se chama
Solidão
Dentro dele, dentro dele,
Mora um anjo, etc. etc. etc.

(diz o etc. etc. etc. e fala)
Vou tocar esta, que é mais bonita!

(cantarola)
Nesta rua, nesta rua.

(mas toca, contra a vontade, a Valsa nº 6)
Não é isso!

(insiste no canto)
Mora um anjo que...

(e o que sai do piano é, ainda, a Valsa)
Valsa amaldiçoada!

(aperta a cabeça entre as mãos)
Meus dedos só sabem tocar “isso”!

(com desespero)
Valsa que me faz sonhar com Paulo e Sônia.

(sonâmbula)
Uma Sônia translúcida e um Paulo esgarçado...

(cobrindo o rosto e rindo)
Dr. Junqueira é doido pela Valsa nº 6!

(dramatizando um velho)
Ah, toca a valsa, minha filha, pelo amor de Deus!

(avança até à boca de cena)
Paulo, eu te odeio, e por que, Paulo?

(num apelo)
Que fizeste de mim, do meu rosto e dos meus 15 anos?

(feroz)
Se eu pudesse enterrar as unhas na carne macia do teu pescoço!

(suplicante)
Dize, ao menos, o que eu sou de ti?
Noiva?
Prima?
Cunhada?

(exasperada)
Que sou eu de ti?

(triunfante)
Esperem, esperem!

(corre ao piano, e toca a Valsa nº 6)
Estou-me lembrando! Aos poucos...

(para a platéia)
Paulo cresce como um lírio espantado...

(desenha, com uma das mãos, o lento crescer do lírio simbólico)
Vejo a testa, as sobrancelhas, os olhos, o puro contorno dos lábios!

(estaca)
Mas tua fisionomia está mutilada!

(num lamento)
Faltam várias feições!

(com deslumbramento)
Agora te vejo de corpo “quase” inteiro...

(incerta)
“ Quase”, porque eu me lembro de tudo, sim...

(súplice)
Só não me lembro dos teus sapatos. De que cor, de que modelo eram?

(envergonhada, baixando a cabeça)
E como não consigo me lembrar dos sapatos, tua imagem aparece descalça na minha lembrança.

(num apelo)
Por que não te calças, Paulo?

(sem transição)
Aposto que Sônia anda por aí.

(doce)
Mas, Paulo, eu me lembro de ti e de mim. E de mais nada.
Porém, duas pessoas não podem existir sem fatos.

(num espanto feliz)
Fatos! Sim, é isso! Isso mesmo!

(excitada, para a platéia)
Fatos... Bem que eu sentia falta de uma coisa. Era deles, dos fatos!

(frenética)
Que aconteceu entre nós, Paulo? Deve ter acontecido alguma coisa!

(súplice)
Que fizeste, Paulo?

(com enleio e volúpia)
Me beijaste, foi, querido?

(feroz)
Ou me traíste?

(cultivando a hipótese)
E quem sabe se com Sônia?

(já no piano dá violento acorde)

Só não queria que fosse com Sônia!

(frívola e irresponsável)

E se já me beijaste, que seria hoje este beijo senão uma sensação perdida?

(desesperada)
Porém, é que... Fizeste uma coisa, sim, da qual não me lembro, uma coisa, não sei, que me separa de ti e...

(coro dinâmico)

Ela é muito meiga!
Uma boa menina.
Educada.
Se é.

(violenta)
Sou, não sou?

(macia e perversa)
Mas ninguém sabe as ganas que tenho.

(feroz)

De te bater!
De te estrangular, Paulo!

(melíflua)
Talvez sejas doce como um primo criado com a gente, mas.

(lenta)
O punhal, que papai me deu de presente... De prata.

(rápida e feroz)
Eu cravaria em ti este punhal!

(alisando o vestido, com enleio)
Sabe, Paulo?
Eu escondia meu ódio, e o dissimulava dia e noite.

(cordial e prosaica)
Se bem que eu tinha muita insônia.

(intensa)
Uma insônia cravejada de ódio!

(corre ao piano. Valsa nº 6. Espantada)
Mas roubaram o meu punhal...

(frívola)
Como? Ah, sim, pois não! O meu punhal de prata... De penetração macia, quase indolor. .

(doce)
E naquele dia, te inclinaste, Paulo. .

(ergue o rosto, entreabre os lábios)
... para um beijo rápido.

(espantada)
Mas Paulo! Não beijaste a mim!

(num sopro de voz)
A mim, não...

(num lamento)
Beijaste alguém, que não era eu, que sou tua namorada ou noiva!

(recua, apavorada e apontando)

A mulher a quem beijaste, ainda ficou de boca entreaberta... Eu vi pelo espelho, tudo!

(incerta)
Mas quem foi, Paulo, quem foi?

(num grito selvagem)
Sônia! Beijaste Sônia!

(corre ao piano, toca, passionalmente, a Valsa nº 6, ao mesmo tempo que soluça de rosto para a platéia)


FIM DO PRIMEIRO ATO






SEGUNDO ATO



(MESMO CENÁRIO. DETRÁS DA CENA, O BOMBO, COM O SEU OBSTINADO ACOMPANHAMENTO. A MENINA JÁ NÃO ESTÁ NO PIANO. NO MEIO DA CENA, FAZ A SUA ENCANTADA VIAGEM AO PASSADO. Ë, AGORA, UMA MENINA EM PLENO JOGO INFANTIL.)


Bento que o bento, ó frade!
Frade!
Na boca do forno!
Forno!
Virai um bolo!
Bolo!
Faremos tudo o que seu mestre mandar?
(erro de português bem enfático)
“ Fazeremos” todos!

(paródia de um delirante riso infantil. Transfigura-se. Lamento)
Não sei, meu Deus!
Isto é, Sei! Foi assim.

(senta-se ao piano. Breve trecho da Valsa n9 6)
Eu estava tocando a Valsa, a pedido de alguém.

(para a platéia)
Foi, não foi?
Então, esse alguém veio devagarinho, pelas costas...

(golpe no piano)
E que mais, meu Deus? que mais?

(fremente)
Não havia mais ninguém na sala. Só nós dois...

(golpe no piano)
Mas então eu tive um mau pressentimento... Parei de to...... A pessoa pediu: CONTINUE! CONTINUE!

(toca e pára)
Gritava: MAIS! MAIS! MAIS! SEMPRE MAIS!

(toca e pára)
E depois...

(para a platéia)
Que aconteceu depois?

(espantada)
As lembranças chegam a mim aos pedaços. . . Ainda agora, eu era menina.

(muda-se em menina. Corre, pelo palco, trocando as pernas)
Onde está a Margarida, olé, oh, olá?

(põe-se de joelhos para espiar as águas de imaginário rio)

Vejo restos de memória, boiando num rio,

(aponta o chão)
Num rio que talvez não exista...

(ri, feliz)
Passam na corrente gestos e fatos.

(apanha na água invisível, com as pontos dos dedos, algo que teoricamente goteja)

Eis um fato antigo.

(aponta para o ar)

Vejo também pedaços de mim mesma por toda parte...

(numa revolta)
Meu Deus, como era mesmo o meu rosto, meus cabelos, cada uma de minhas feições?

(para uma espectadora)
Minha senhora, esqueci meu rosto em algum lugar.

(feroz)
Mas eu não saio daqui, antes de saber quem sou e como sou. (ensaia um retorno à infância)
Onde está a Margarida...

(Estaca. Insiste)
Onde está a Margarida,
Olé,

(Estaca novamente)
Acho que sou menina!

(incerta)
Não, não...

(chega à boca de cena)
Olé, Oh, Olá... Acho que sou mulher...

(atitude)
fumando numa piteira de âmbar...

(num crescendo de angústia)
Ou, então, uma senhora gorda que sofre dos rins, do fígado
e se queixa de azia!

(muda de tom)
Senhora, existem ou existiram espelhos?
Ou, então, conheceis a água translúcida de um rio?
Um rio, sim, onde meu rosto possa deitar-se entre águas?

(corre ao piano)
Essa música, estão ouvindo?

(Valsa nº 6)
Era a paixão de Sônia!
A música que Sônia tocava muito!

(dando um acorde selvagem)
Mas eu não odeio Paulo!

(outro golpe)
Eu disse que odiava?
Mas, não, nunca!
Tudo não passou de um mal-entendido!

(irresponsável)
Pois se até gosto muito dele!
Tenho verdadeira adoração!

(coro escandalizado)
Adoração como?
Ora essa!
Depois do que ele fez!
Beijou outra!
Eu bem!

(selvagem)
Odeio, sim, mas Sônia!

(roda o dedo, ameaçadora)
Ah, se fosse comigo!
Porque fique sabendo que eu sou geniosa

(faz voz de nortista)
Nasci no Recife, bairro da Capunga!

(gingando, plebéia)
E tira o cavalo da chuva!

(dolorosa)
Saibam que amo Paulo!

(com unção)

tão bonito que se eu pudesse...

(numa doçura mais intensa)
vivia acendendo círios diante dele.

(inquieta e sinistra)

Mas Sônia não me larga. Ela me espia!

(olhando para os lados)

Agora mesmo..

(baixa a voz)

Eu sinto os olhos de Sônia dentro de mim...

(apanha fios, que estariam enrolados nas suas pernas)

Sônia está neste momento...

(riso soluçante)

enroscada nas minhas pernas, como uma serpente de mil anéis!

(num apelo)
Tu, Paulo! Eu te peço!

(chorando)

Darling! Darling!

(estaca)

Quem?
Sônia!
Ora veja!

(com desprezo)

Imagine, Sônia!

(feroz)

Falsa, falsíssima!

(rápida)
Os olhos, o sorriso, a cor dos olhos!

(exultante)

Tudo, em Sônia, não presta, juro!

(corre à boca de cena)

Até eu soube de um caso... Não sei se alguém me contou ou se eu mesma vi...

(feroz)

Eu mesma vi!
Com estes olhos que a terra há de comer!

(coro ávido)
Viu, é?
Conta!
Ah, conta!

(tons diferentes e caricaturais de súplica)

Mas olha que é segredo!

(intencionalmente lenta)

Pois Sônia...

(frívola)

... tem um caso...

(deixa cair a bomba)

COM UM HOMEM CASADO!

(pausa)

Que tal?

(cochichos escandalizados)

O quê?
E Sônia?
Virgem!
Nossa Mãe!
Que blasfêmia!

(confirmando, feroz)
Pois é, homem casado! Casadinho! E está direito? Claro que não, evidente, onde já se viu, essa é muito boa!

(vaidosa)

Eu, não, Deus me livre! Homem casado, comigo, está morto. enterrado!

(súbita angústia)
Oh, Paulo!

(incoerente)
Além disso, eu não acharia bonito homem casado!
Homem casado não é bonito.

(com involuntária doçura)
Nem tem lábios meigos de beijar,

(incerta)
Nem sombreado azul de barba!

(veemente)
Eu preferia morrer!

(solene)

Jamais homem casado roçou meu corpo com a fímbria de um desejo!

(transfigurando-se em mãe de família)
Mas por que Sônia não namora menino de sua idade? Tão natural, não é mesmo?

(sardônica)
Ah, não! Que esperança!

(cruel)

Prefere o marido de alguém!

(informativa)

Tem horror de rapaz nojo!

(com desprezo)

Só pensa e sonha...

(vela o rosto, com pudor)

com homem feito!

(sem transição, começa a pular amarelinha)

Interessante!

(evocativa)
Até outro dia... Outro dia, é modo de dizer... Há coisa de um ano...

(ri, feliz)
...Sônia ainda brincava de amarelinha. Que ótimo! (estaca)
Margarida... Onde está...
Oh...
Margarida...

(lenta e desconfiada)
Olá.

(frívola e ágil, começa a jogar amarelinha)
Sônia de meias curtas. .. E os cabelos rolando sobre o silêncio das espáduas.

(cordial)

Sônia era menina, tão menina, que, até, nós duas tomávamos banho juntas...

(amável ainda)

Perfeitamente.
E a toalha era só felpuda.
Eu gostava de ver as gotas, milhares, sim, milhões de gotas nas costas, nos braços, de Sônia.
Cada gesto...

(ri, direitíssima)
era uma catástrofe de gotas.

(corta o riso)

Pois eu só gosto de namorado de minha idade.
Ou pouco mais velho, só.

(terror)
Mas súbito a menina...

(estaca)
O que foi que houve com a menina?

(paródia materna)
Hem, Dr. Junqueira? Que foi?

(pigarro, andar de perna dura)

Nada, nada. Coisa à-toa.

(mãe aflita)
Mas Sônia anda triste.
Chora sem motivo...
Ou ri demais!

(baixa a voz)
Deu para ter vergonha de tudo.
De tudo, doutor!
Uma coisa por demais!

(pigarro)

A idade, minha senhora, a idade. A transição.
Idade?

(informativa)
Sônia tinha de 14 para 15 anos.
15.
Ou 15.
Começou a ter vergonha de tudo. Dos próprios pés.
Seu coração palpitava, se ela via os próprios pés, (doce) frios e nus, sem meias e sem sapatos.

(pudor)

Pés despidos, meu Deus!

(excitada)
Tem mais, tem mais!

(vem fazer a revelação na boca de cena)
Tinha vergonha dos móveis.
Digo dos móveis descobertos, sem nenhum pano, nenhuma toalha. Portanto móveis nus.

(sofisticada)
Quanta bobagem!

(grita sem transição)
Mas, e eu?
Só se fala de Sônia! Eu própria só penso nela!
Porém agora só vou falar de mim. E de Paulo, também.

(num lamento)
Oh, Paulo! ainda não sei quem és.
Talvez meu primo, meu noivo ou cunhado, mas sei que há entre nós os “outros”.

(com ódio)

Os “outros” sempre existem, estão em toda a parte. . . Mas
não..

(baixo)
Quem me separa de ti deve ser Sônia.

(em seu furor)
Eu sei que ela pensa em ti,
e fecha os olhos.
E se tranca no quarto.
Para pensar em ti.
Até morta, pensará em ti.

(corre ao piano. Valsa nº 6)
Mas eu tenho meu punhal de prata.

(fora de si, em punha o invisível punhal)
E se eu pudesse apunhalar um nome, cravar neste nome um punhal. Depois vê-lo agonizar aos meus pés.

(veemente)

Se eu pudesse matar o nome de Sônia!

(atônita)

Porém roubaram o meu punhal de prata.

(súbito medo)
Que esperança! Eu não mataria ninguém. Nem mesmo um nome, juro!

(grita)
Não há uma assassina em mim!

(baixo)
Além disso, um defunto contamina tudo com sua morte, tudo, a mesa e a dália.

(para a platéia)
Eu não mataria. Agora Sônia é diferente!

(segreda)
capaz de tudo!

(grita)
Mas só elogiam Sônia. E a mim, não.
Sônia é isso, Sônia é aquilo.

(imitação caricatural)

Sônia tem vocação para música, piano, bordado.

(paródia do médico)
Sônia precisa fazer operação de amígdalas.

(despeito)
Eu também preciso, ora essa!
Também quero tirar as amígdalas!
E sei tocar Valsa nº 6 direitinho.

(corre ao piano e dá um violento golpe no teclado)

Sônia já desejou a morte de alguém.
De quem?
Dele, é lógico. Mas quem é ele?
Deve ser um homem casado. . . Ou, então, Paulo!

(corre para a boca de cena)
Sim, desejou a morte de Paulo. Imaginou Paulo morto.

(num sopro de voz)
Sonhou com um velório não sei por que muito branco.

(dança e salta, trocando as pernas)
Sônia dança, Sônia canta!

(estaca)
Dançaria até na câmara ardente de Paulo.

(lenta)
Quem sabe se, na dança, não tropeçaria num círio?

(cordial, amável, mundana)
Mas num velório há sempre um cafezinho.
Distribuição e alarido de xícaras e pires.
Mais açúcar, madama?

(furiosa)

Hipócrita! Mentirosa!

(amável)
Bem. Eu sei fazer muitas coisas.
Declamo.
Conheço não sei quantas receitas de bolos.

(feliz)
E, uma vez, cerzi uma calça 4e papai tão bem, que nem parecia.

(coro)
Ela não desejaria a morte de ninguém.
Nem de Sônia?
De Sônia, talvez.
Ó tima idéia a morte de Sófia.

(lenta e grave)
Mas Sônia não morrerá.

(exultante)
Há-de morrer, sim! Farei promessa!

(grito)
Alguém gritou?
Não.
Gritou, sim! Foi, não foi? Um grito!...

(apavorada)
Um grito parecido com um que eu conheço. Mas não pode ser.

(medo ainda)
Foi coincidência.

(incerta)

Engraçado, tão parecido com o meu próprio grito. (imitação de cochicho de comadre)
Que foi? que foi?
Uma moça.
Mataram uma moça.
Onde?
Uma moça.
Novinha.

(bruxa)
Não é a primeira que morre.

(lenta)

Um homem casado matou!

(espanto e euforia)
Casado?
Marido de outra mulher?

(coro)
Casado, sim!
No civil e no religioso.
Com filhos.
Tinha uma mulher muito boa!

(bruxa)
Dizem que...

(corre, desesperada, em círculo)
Dizem o quê? Quero saber o que dizem! Preciso saber!

(cochicho)
Parece que a vítima...

(grita)
Vítima, não! o nome! quero o nome!

(chega à boca de cena, apela para a platéia)
Alguém sabe o nome? quem sabe, diga, pelo amor de Deus! Eu não quero nada demais, apenas o nome!

(chorando)
E o que é um nome?

(novo tom)
Pois dizem que a vítima estava tocando uma música..

(senta-se, feroz, ao piano)
Esta?

(Valsa nº 6)
não, é?

(mais cochicho)
Então, o assassino veio, devagarinho... Pelas costas...

(ávida)
Que mais? pelo amor de Deus, que mais?

(sinistramente)
Não havia mais ninguém na sala.
Só os dois.
Os dois, sim.
A vítima ia ao seu primeiro baile... Tinha um vestido branco, de lantejoulas prateadas, véu nos ombros... E parece que teve um mau pressentimento, porque...

(gritando)

Continue!

(baixo)
Porque parou a música...
Sei, sei!
Então, o assassino pediu...

(corre para o piano)
Mais, mais!

(Valsa nº 6)
Sempre mais!

(novo trecho)

Sempre, sempre!

(frenesi)

Mais forte!

(o piano quase vem abaixo)
E a vítima continuava. Não ia parar nunca. Então...

(pausa. Deixa o piano)
O assassino mergulhou o punhal de prata nas costas da moça.
Mesmo ferida, a vítima quis continuar tocando e.

(dois acordes ainda)
Gritou?
Gritou.
Sei.
Mas não deu muita confiança à morte, porque ia tocando mais. Porém, a cabeça desabou sobre o teclado...

(golpe no teclado)
Quando apareceu gente, Sônia já estava morta.

(grita)
SÔNIA!

(baixo)
Sônia, disseram Sônia?

(cochicho)
Sônia, sim, como não?
Aquela menina.
Uma que tocava muito bem.
E sabia francês.
Natural.
Estudou nos melhores colégios.

(meu lua)
Incapaz de matar uma mosca!

(tranqüila e cruel)
Morreu. Enfim, morreu. Mas eu não estou satisfeita. Nada satisfeita. Pelo contrário...

(olha para os lados)
Seu enterro deve ter sido muito bonito.
E ela própria também, porque as mortas são uma simpatia.

(sofisticada)
Digo isso, porque manda a boa educação.

(ostensivamente hipócrita)
Uma virgem morta entre flamas.

(feroz, sem transição)
Larga minhas pernas, Sônia.

(lenta)
Tu já morreste.
Teus olhos estão cegos dentro de mim.
Maldita!

(num aparte melíflua, para a platéia)
feio falar mal dos mortos.

(feroz)
Teu vestido, sim, teu vestido de lantejoulas prateadas, já não me persegue mais!

(na boca de cena)

Escondeste tua maldade de todos! Teu rosto, ninguém o conheceu.

(hirta)
Usaste uma face doce e altiva que não era a tua.

(mais paixão)
Só a morte viu o teu rosto verdadeiro e último.

(selvagem)
Dançarias, não?
Dançarias, se Paulo morresse? Pois eu danço também!

(corre no palco e pára para fazer a paródia das comadres)
Viram o assassino?
Quem?
O assassino!
Que coisa!
Completamente gagá!
Médico instruído!
Competente!
(comentário caricatural)
Os velhos hoje em dia são os piores!

(chamando os outros)
Vamos espiar, vamos?

(cruel)
Está ali, deitada, a menina que iludia a todos.

(como se rezasse)
Parecia uma jovem santa, branca e sem mácula, tão frágil e tão fina.

(comadre)
Eras boa demais para este mundo!

(hierática)
Vai-te!
Agora Paulo está puro de ti.
E eu queria que ninguém te visse mais.
Nem as flores do caminho.
Que teu perfil de morta passe por entre lírios cegos!

(numa maldição maior)
E onde quer que estejas, odiarás tua lancinante forma terrena.

(coro de comadres)
O pai está que nem doido!
De amargar!
E a mãe?
A mãe é bacana. Teve 15 ataques!

(bêbedo, com o típico soluço)
Sabe o que me invocou?

(avidez)
Que foi? que foi?

(bêbedo)

É que, mesmo ferida, mesmo com o punhal enterrado nas costas.

(soluço)

...a vítima ainda queria continuar tocando.
Vocação, ora essa!

(comadre melíflua)
Nessas ocasiões, eu tenho muita pena de quem fica! E eu de quem morre.

(sofisticada)

Mas nem tem comparação.
Eu, hem!
Claro! Porque quem fica chora...
E o defunto?
O defunto nem sabe que morreu!

(Sônia corre ao piano. Valsa n.0 6. E grita dentro da música)

Sempre! Sempre!


FIM DO SEGUNDO E ÚLTIMO ATO

Sinopse jurídica

Como bem se sabe, ou melhor, se descobre ao longo da peça, a Valsa nº 6 é a história de Sônia, uma menina de 15 anos, esquizofrênica, que foi a vítima de um assassinato. A narração provém da junção de memórias mal alinhadas depois de sua morte. O assassino é sugerido como tendo sido o Dr. Junqueira, o único suspeito, médico da família e possivelmente pedófilo. Desnecessário dizer que o estado de Sônia torna o seu relato menos do que confiável para se fundamentar uma investigação. Por isso, achamos por bem formular uma lista de fatos nus, que podem ser averiguados por qualquer investigador que não tenha sido influenciado pelas memórias de Sônia nem tido com os envolvidos contato anterior. Vamos aos fatos:

DETALHES GERAIS

  • Todo o ocorrido se deu na cidade de São Paulo, em 1954 (para efeitos de análise sociológica e de localização da importância de pessoas e lugares apenas; para efeitos do jurídicos, o caso deve ser considerado como atual, ou nem poderia ser julgado, pois haveria a preclusão da pena);
  • A família Pinheiro da Cunha é abastada; o pai da vítima, Manuel Pinheiro da Cunha, 52, é engenheiro e dono de uma pequena empresa de construção civil. A mãe da vítima, Virgínia Silva Cunha, 38, é dona-de-casa originária da classe média de São Paulo. Jamais trabalhou. Sônia era a única filha do casal.
  • A casa se situa perto da Av. Paulista, então região já em expansão, mas ainda com considerável zoneamento residencial de luxo.
  • O Dr. Junqueira, 63, tem formação pediátrica, tendo sido por esse motivo que se tornara o médico da família. É casado com Marialva Junqueira, 61, dona-de-casa, e vive no bairro próximo do Bixiga.

SOBRE O SUSPEITO

  • O Dr. Junqueira nasceu no município de Valinhos, estado de São Paulo, mas viveu a maior parte de sua vida na cidade de São Paulo. Formou-se em Medicina e trabalhou num hospital infantil durante oito anos. Depois disso, passou a atender a consultas a domicílio. Sua ficha criminal permaneceu sempre limpa, com a exceção de uma queixa por sedução. A denúncia partiu de Juscelina Oliveira, 55, que alegou, 22 anos antes do ocorrido, que o médico haveria tentado seduzir sua filha Jussara, então com 13 anos, para dar um passeio. Dois dias depois, a queixa foi retirada.
  • O Dr. Junqueira sempre foi descrito como um homem fiel, apesar da fama de malicioso e brincalhão. Era conhecido por alguns colegas por pagar passagens de bonde a mulheres que encontrasse. Apesar de extravagante, tal comportamento jamais gerou severas suspeitas sobre seu caráter.

ESTADO MENTAL DA VÍTIMA

  • Sônia já havia dois anos que começara a apresentar alguns dos sintomas típicos da esquizofrenia: inicialmente o afastamento da realidade, apatia, radicais desordens emocionais e posteriormente alterações na percepção e também delírios e alucinações. Apenas para lembrar, esquizofrenia (do grego, “dissociação da mente”) foi um termo introduzido pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler em 1911 para caracterizar os pensamentos e emoções fragmentados e por vezes contraditórios apresentados pelos indivíduos afetados. Ninguém até o momento conhece suas verdadeiras causas.
  • O Dr. Junqueira em nenhum momento diagnosticou o estado mental da vítima. Segundo a família, ele atribuíra as mudanças de comportamento à adolescência (“são coisas da idade” ou “sua filha era menina, transformou-se em mulher, então veio o choque, o abalo”). Existe a conjetura de que isso tenha sido causado por abusos que o médico teria feito sobre a paciente, e que este temia que fossem a razão dos problemas emocionais apresentados pela menina, mas não há nenhuma prova que permita acolher tal interpretação.
  • Há nos relatos de Sônia eventuais referências a uma personagem chamada “Paulo”, mas não se sabe a quem ela se refira. Como diz o relato, Paulo seria um homem com quem Sônia teria mantido um caso (embora os pensamentos e emoções alquebrados de Sônia pudessem ter criado uma personagem fictícia ou fantasiado relações com uma pessoa próxima). Sônia manifesta carinho e ciúmes quanto a Paulo, ao mesmo tempo em que o contrapõe constantemente ao Dr. Junqueira.

CIRCUNSTÂNCIAS DA DESCOBERTA DA VÍTIMA E DA PRISÃO DO SUSPEITO

  • A vítima foi descoberta por volta da 18h, horário em que a mãe chegou em casa. Vizinhos notaram com estranheza o brusco fim da última peça tocada pela menina, e garantiram que não ocorreu depois das 16h. Não foram escutados gritos ou outros indícios diretos da ocorrência de um ato grave, portanto os vizinhos não procuraram descobrir do que se tratava.
  • O cadáver foi encontrado debruçado sobre o piano, com uma enorme mancha de sangue sobre o vestido branco. A morte ocorreu devido à hemorragia. Não havia qualquer sinal de reação por parte da vítima contra o agressor.
  • O suspeito foi preso com base nos relatos de vizinhos que diziam que o médico fora visto na vizinhança na tarde daquele dia, com um ar visivelmente transtornado. A família relata que sua presença não havia sido requisitada naquele dia, nem no anterior. Considerando as atividades daquele dia, o horário do ocorrido foi entre as 14h30 e as 16h. A empregada, Telma Nazareno, 66, que trabalha na casa há nove anos, estava de folga naquele dia. O pai se encontrava no trabalho e a mãe num salão de beleza.

CENA DO CRIME

  • A cena do crime foi a sala de música da casa da vítima, Sônia Pinheiro da Cunha. Não houve quaisquer sinais de arrombamento na casa, visto que a porta fora encontrada destrancada, nem de luta. Além disso, a posição da arma nas costas sugere que a vítima foi surpreendida ou que não reagiu. Nada foi roubado ou movido de alguma forma.

ARMA DO CRIME

  • Punhal de prata, lâmina de 7 cm, era uma herança de família. O pai diz que a filha tinha certa afeição pelo objeto, e que havia sido dado a ela por ele.
  • Não foi notada a falta do punhal por ninguém na casa (com exceção de Sônia pelo seu relato, mas que nada disse), mas não é impossível que este tivesse desaparecido, o que poderia ser indício de premeditação. Dessa forma, o argumento da premeditação do crime com base no sumiço anterior da arma é circunstancial. Além disso, o punhal foi encontrado cravado na vítima, sem digitais, por uma mão destra e precisa.
  • A arma perfurou o rim e o baço. A hora do óbito foi fixada em 15h35, mas é possível que tenha sido uma hora antes ou depois.

RELAÇÃO ENTRE O SUSPEITO E A VÍTIMA

  • O Dr. Junqueira era médico da família já há cinco anos, desde que falecera o médico anterior, Dr. Lourival Medeiros. Desde então, tratara principalmente da menina, que, segundo a mãe, “sempre apresentou saúde frágil”. Tal fato fez a família preferir um pediatra.
  • Era visível o comportamento ambivalente que a vítima manifestava quanto ao suspeito, segundo a família. Depois dos primeiros sintomas esquizofrênicos, dois anos antes, Sônia apresentava ansiedade pela visita do médico. Cerca de seis meses antes, porém, apresentou uma visível repulsa à sua presença. De qualquer forma, o médico continuou a prestar seus serviços.
  • Não há qualquer indício da existência de abuso por parte do médico contra a vítima, embora o pai o descrevesse antes do ocorrido como “um homem de ar desagradável e intrometido”. É conhecido que a mãe pelo médico nutrisse maior simpatia.

OUTRAS TESTEMUNHAS

  • Marisa Lourenço Dias, 45, foi quem identificou o Dr. Junqueira perto da casa no dia do crime. O suspeito fora por ele visto num bar próximo, a dois quarteirões da casa. Isso teria sido entre as 16h15 e 16h45.

Fotos

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Companhia de Teatro da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco